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APRENDENDO A SER HUMANO

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ENSAIO SOBRE O MEDO


O medo escolhe a noite. As horas mais frias bem no meio da madrugada da gente. Ele está sempre à espreita atrás de uma sombra feita de dúvida e dor. A cor do medo é o azul mais escuro possível antes de ser chamado de preto. Porque o medo não é a ausência de tudo, é a presença implacável de algo que sempre resta. Para lidar com o medo, não podemos ser todos luz. Ele não surge a um palmo da gente nem cola no nosso seu rosto gelado de linhas bem definidas se não for para ser claramente visível. E a luz dissipa sua forma. Dissolve os limites do desenho bem definido do medo. Não, agora ela não ajuda a ver. De nada servem os olhos, já que o medo não se deixa enxergar por eles. O medo talvez nem os tenha também. Ele tem só boca e estômago. É um canal sem fundo de fome parido pra devorar. Aqui tudo cabe, tudo vira um bom caldo para uma boa refeição. O detalhe que sempre nos escapa, a menor porção de nós mesmos, o pedaço invisível do assombro que insiste em deitar ali. No começo ele junta retalhos. Pequenos demais para merecerem nossa atenção. De remendo em remendo, vai crescendo. Até não precisar mais cutucar para mostrar, olha ele está ali. Não, a gente já sabe. Já sente o peso da linha de chumbo que costura por dentro da gente os pedaços que ficaram soltos e renegados pelo caminho. E a partir de um dado momento, esse caminho é uma via aberta que clama para ser visitada. Uma vez percorrido um minúsculo trecho, já sabemos de antemão sobre os nós e os pontos mal feitos que seguirão. E parece que precisamos de alguma forma entendê-los. Temos que descobrir o que existe de tão irrecusável aqui. O que é que sempre nos seduz para esse desvio fácil e profundo. Talvez nada de impressionante. Porque o que ele mais quer de nós é que simplesmente o percebamos. Saibamos que ele existe e que está bem aqui. Porque quanto mais fingimos que não, mais fiapos de linha se vão. Até que, se insistirmos demais, seremos nós mesmos a própria manta de remendos. E então já não se separa isto daquilo. E se descosturarmos os pedaços, estaremos nos desfazendo a partir de nós mesmos. E se for esse o ofício do medo? Nos desfigurar para depois nos despedaçar. Ser feito de um nós rejeitado para depois só sobrar a chance de se reconhecer ali. Mas desse seu louco ofício, se faz sempre um novo sentido em nós. Um novo sentido de nós.


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